06.09 - Prólogo



Bom, então é isso aí, né, mais um ano e estamos aqui de novo...
Há umas boas décadas, escutei uma frase de péssima concordância verbal, talvez porque proferida por um argentino, mas de rara lucidez existencial: "Filhos, melhor não tê-los. Mas se tê-los, melhor comê-los". Já que da oligofrênica tentação da paternidade pareço ter escapado até onde sei, sem nenhum súbito alegado filho batendo na porta para pedir amor e grana para a cirurgia de redesignação sexual até o momento, parafraseio a tirada para torná-la mais próxima à minha circunstância: "Vida, melhor não tê-la. Mas se tê-la, melhor morrê-la". A morte, contudo, tampouco tem me batido à porta, e a busca mais ativa e altiva por ela continua esbarrando em sérias limitações culhônicas. Então, até que o avião caia (algumas oportunidades nesta viagem, amiguinhos!), ou eu consiga criar mais vergonha na cara ou desespero na alma, faço mais uma vez a segunda melhor coisa para fugir do indigno absurdo do dia-a-dia de portador desta doença chamada vida: vou viajar.

Saio daqui ainda no inverno, o que significa ainda verão lá praqueles lados, sair do quente para o mais quente ainda. Apesar de desapontador pode ser útil, pois desta vez resolvi ir com pouco mais do que uma lancheira escolar nas costas, levando só umas duas mudinhas de roupa, pra tentar emplacar aquela tarifa de passagem supereconômica em que nem um modess te franquiam levar como bagagem, mas principalmente pra tentar ter no lombo um peso administrável praquela frequente situação de chegar à 8 da manhã em uma cidade e a diária do hotel só começar duas da tarde, e ter que ficar indo e voltando e voltando e indo e dependendo de terem um depósito de bagagem pra largar a mochila pesada, e no fim passar um mês inteiro carregando aquela quinta cueca e par de meias que nunca chego a usar. Desta vez vai ser minimalista, e que bom que blog de viagem não tem cheirinho.

Mais uma vez, a quarta seguida, o mesmo malfadado e desafortunado ser que me acompanha se sujeita ao indigno castigo de me fazer companhia! Nem consigo começar a tentar conceber que tipo de eventos traumáticos extremos causaram tamanha avaria em sua autoestima e seu mais incipiente bom-senso para que ela se lance a coisa tão excruciantemente masoquista como mais uma vez batalhar contra a náusea de ter a mim por perto por 40 dias sem tirar de dentro. Mas sou grato pelo sacrifício. Tendo companhia, a desgraça de minha presença se abate e se projeta sobre nós dois, coisa que eu teria que suportar sozinho se não a tivesse a meu lado. Exceto na hora da montanha-russa, aí continua não tendo o que desempaque o bicho...

Três maratonas no programa, uma delas em uma cidade média que nem se preocupou em montar um percurso de 42 km lineares, mas estipulou 4 voltas num percurso de 10 km. Preguiçoso. Não ouso imaginar como será a corrida seguinte, então, que vai ocorrer em um semivilarejo...

O tema visual desta viagem é meu chapéu de Gandalf. Eu poderia inventar toda uma narrativa pra dar conta da escolha, mas na verdade foi o que apareceu e me brilhou nos olhos mesmo. Temas para fotos de viagem são como puteiros: visite-os com frequência suficiente e em algum momento todas as boas opções já terão sido utilizadas, e vai ficando cada vez mais difícil encontrar algo novo que pareça diferente, relevante e satisfatório.
E vai dar trabalho ficar carregando este trambolho. O boné de Trump já encheu tanto o saco num verão passado...

Por fim, admito envergonhado, a musa inspiradora e matrona de minhas gracinhas chauvinistas, pelas quais, neste mundo de crescente patrulhamento de pensamento, ainda acabarei sendo processado, continua sendo a Ana Paula Arósio. Para quem, assim como para mim e Ricardo III, já é chegado o inverno de seu descontentamento, mas, até que minhas gônadas cada vez mais atróficas voltem a pulsar por um novo e menos grisalho objeto de desejo, é o que temos.


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